Flávia Lefèvre

As eleições no Brasil em 2018 para presidente da república, senadores e deputados federais transcorreram num clima inflamado, muito em função do uso abusivo de serviços oferecidos pelas plataformas que atuam na Internet; especialmente pelo uso do WhatsApp, com violação de diversos dispositivos da lei eleitoral, expondo milhões de consumidores a situação de extrema vulnerabilidade, pela distribuição de mensagens direcionadas para explorar sentimentos de medo e insegurança, com o objetivo de desqualificar candidatos, divulgando notícias falsas, que terminaram por influenciar a formação de opiniões e votos.

A responsabilidade pela violação à lei eleitoral não é só dos partidos, dos políticos e de apoiadores de determinadas candidaturas, mas é também de algumas plataformas que aceitaram desempenhar o papel de palco para os debates públicos eleitorais, sem adotar medidas suficientes para coibir o uso ilegal de suas aplicações.

Há na lei eleitoral ferramentas suficientes que poderiam ter impedido o uso ilegal das redes, que tiveram como efeitos o desequilíbrio do processo eleitoral e a desestabilização das instituições democráticas no Brasil, sem que as plataformas tenham adotado providências para que a lei fosse cumprida e, pior, sem que as autoridades competentes como o Ministério Público Eleitoral e o TSE tenham tomado medidas efetivas para evitar os danos.

Tudo isso se deu com base no uso ilegal dos nossos dados pessoais, contrariando o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor. Isto porque quando abrimos nossos dados no Facebook, que é do mesmo grupo econômico do WhatsApp, o fazemos pensando que muitas das informações a nosso respeito não serão transferidas e tratadas de forma ilícita por empresas de marketing eleitoral, que atuaram para manipular a garantia da autonomia da vontade, atentando contra princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, direito a privacidade e intimidade, e contra garantias expressas no Marco Civil da Internet no art. 7º, que tratam dos direitos relativos aos nossos dados pessoais.

Ou seja, as plataformas descumpriram direitos protegidos pelo Marco Civil da Internet e pelo Código de Defesa do Consumidor, na medida em que o princípio da boa fé objetiva e a obrigação de fornecer serviços seguros e que não exponham os usuários à situação de vulnerabilidade e risco foram absolutamente ignorados.

Isto porque a utilização das plataformas por apoiadores de determinadas candidaturas permitiu o uso de nossos dados pessoais para direcionar propaganda política ilegal, com o objetivo de influenciar nossos votos.

O descumprimento dessas obrigações causou danos em escala individual, coletiva e difusa, pois as instituições democráticas estruturadas para proporcionar um processo eleitoral ético e equilibrado foram atingidas.

E, nesse sentido, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor e o Ministério Público deveriam ter atuado de forma incisiva, impondo a adoção de medidas de segurança.

Hoje, depois de ocorridos os danos em escala abrangente e nacional, as instituições competentes deveriam estar mobilizadas em responsabilizar não só aqueles que promoveram a desinformação pela Internet, mas também as plataformas que não ofereceram serviços com a qualidade e segurança que razoavelmente se poderia esperar, nos termos do art. 20, do Código de Defesa do Consumidor.

As consequências da falta de atuação tanto da SENACON sobre o uso e transferência de dados pessoais ilegais dos dados pessoais por parte das plataformas, quanto do TSE ganham proporção ainda mais grave em virtude do fato de que 53% da classe C e 80% das classes D e E, conforme indicam as pesquisas do CETIC.br de 2017, acessam a Internet exclusivamente por dispositivos móveis. E esse acesso se dá com base em planos contratados com os provedores com volume de dados mensais muito baixos – de 200 Mb a 1Gb por mês – sendo que, após a utilização dessa franquia de dados, o consumidor só tem direito a acessar WhatsApp e Facebook. Sendo assim, caso o consumidor receba uma informação via WhatsApp ou Facebook e queira conferir e checar se a notícia é falsa ou verdadeira, não terá como acessar outros sites para fazer a verificação, a não ser que pague por mais volume de dados ou utilize wi-fi.

Importante destacar que as notícias que são direcionadas para páginas do Facebook de cada usuário obedecem critérios definidos por algoritmos e, sendo assim, não temos acesso à informação de forma livre e irrestrita. Ou seja, o Facebook tem controle sobre o fluxo de informações utilizando nossos dados pessoais para a formação de perfis que determinarão quais notícias cada um de nós teremos acesso.

Considerando que temos 130 milhões de brasileiros na plataforma do Facebook e 120 milhões utilizando o WhatsApp e ainda que essas duas empresas integram o mesmo grupo econômico e compartilham suas bases de dados, é indiscutível que as práticas comerciais utilizadas por essas empresas, que dominam o mercado de rede social e mensageria, deveriam estar na mira das autoridades competentes para evitar o uso abusivo de nossos dados pessoais e a violação da lei eleitoral com consequências gravíssimas que comprometeram a ética e o equilíbrio do processo eleitoral de 2018.

Lei 9.504/1997

“Art. 57-C. É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na Internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes.

§ 3º O impulsionamento de que trata o caput deste artigo deverá ser contratado diretamente com provedor da aplicação de Internet com sede e foro no país, ou de sua filial, sucursal, escritório, estabelecimento ou representante legalmente estabelecido no país E APENAS COM O FIM DE PROMOVER OU BENEFICIAR CANDIDATOS OU SUAS AGREMIAÇÕES.

Art. 57-E. São vedadas às pessoas relacionadas no art. 24 a utilização, doação ou cessão de cadastro eletrônico de seus clientes, em favor de candidatos, partidos ou coligações.

§ 1º É proibida a venda de cadastro de endereços eletrônicos.

Art. 57-H. Sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis, será punido, com multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$30.000,00 (trinta mil reais), quem realizar propaganda eleitoral na Internet, atribuindo indevidamente sua autoria a terceiro, inclusive a candidato, partido ou coligação.

§ 1º Constitui crime a contratação direta ou indireta de grupo de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na Internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação, punível com detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa de R$15.000,00 (quinze mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

§ 2º Igualmente incorrem em crime, punível com detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, com alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$30.000,00 (trinta mil reais), as pessoas contratadas na forma do § 1º.

Código de Defesa do Consumidor

Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.


Flávia Lefèvre Guimarães é mestre em Direito pela PUC/SP, Associada do Intervozes; foi representante das entidades de defesa do consumidor no Conselho Consultivo da ANATEL de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2009 e recentemente eleita para representar o 3º Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (2014 a 2020).

Flávia Lefèvre2019-02-19T00:03:55-03:00

Sérgio Amadeu

“As disputas eleitorais de 2010, 2012 e 2014 contribuiram para as ações de desinformação que observamos hoje. A midiatização das ações políticas e jurídicas combinaram-se com o lawfare, o uso de uma certa interpretação da lei para perseguir lideranças sociais e políticas, para processos judiciais se beneficiarem de elementos midiáticos. O cenário político que se estabeleceu após 2013, indo desde as eleições de 2014, a queda da presidente Dilma e o início do processo eleitoral de 2018, se beneficiou ainda da vitória de Donald Trump e da estratégia da direita alternativa norte-americana, a autodenominada alt-right, em 2016. Isso levou gradativamente a um conjunto de grandes e médios empresários a apoiar a solução brasileira mais semelhante ao vitorioso norte-americano que tivesse viabilidade eleitoral, a candidatura de Bolsonaro. Quem melhor poderia atuar com a estratégia da desinformação em massa e atacar os parâmetros racionais do debate era o grupo político de extrema direita, descompromissado com alianças e práticas de gestão, pois nunca havia governado e não era visto com seriedade até 2016.

Tal como nos Estados Unidos, a estratégia principal foi a ação nas redes sociais. Como a Internet permite a campanha microsegmentada a utilização de big data e a produção de discursos específicos para cada grupo específico, a campanha de Bolsonaro acabou se beneficiando do que seria uma grande fragilidade, o diminuto tempo na TV. Assim, não teve que formular um discurso geral e se comprometer com o atendimento de determinadas pautas. Seu programa de governo inexistia. Bolsonaro tinha frases de impacto. Também foi relevante o fato de Bolsonaro não ter que participar dos debates, o que ocorreu após o controverso esfaqueamento que sofreu em Juiz de Fora, no dia 6 de setembro de 2018. Assim, com discursos contraditórios, com ataques baseados em informações falsas e vitimizado pela facada, a campanha de Bolsonaro organizou uma grande onda de desinformação e suspensão dos parâmetros da realidade. Quando Bolsonaro era questionado, ele utilizava como antídoto de que qualquer contestação era “fake news” dos seus adversários que seriam os “bandidos do PT” e os poderosos do sistema. Curiosamente, os grupos mais poderosos economicamente, o capital financeiro, os ruralistas e tantos outros apoiavam a candidatura de Bolsonaro, ou seja, o sistema econômico estava com ele.

Como o uso de Whatsapp no Brasil contava com a adesão de 90% das pessoas conectadas à Internet, os discursos da campanha vitoriosa eram encaminhados conforme o interesse, a convicção e o temor de cada microsegmento instantaneamente pelo dutos dessa plataforma. Violações da lei eleitoral foram praticadas, uma vez que a campanha principal de Bolsonaro não foi realizada por suas contas registradas na Justiça Eleitoral. A Lei eleitoral somente permitia a campanha paga na Internet por meio do comitê oficial dos candidatos e partidos. A campanha bolsonarista foi distribuída e mobilizou apoiadores, empresários regionais e locais, somada a grandes esquemas de compra de cadastros e soluções de big data. Por isso, Steve Banon, estrategista de Trump e um dos dirigentes da Cambridge Analytica, apareceu em encontros com um dos filhos de Bolsonaro. Diversos disparos massivos foram realizados para cadastros microsegmentados adquiridos de empresas de marketing digital, no Brasil e no exterior.

O uso do Whatsapp não explica a vitória de Bolsonaro. O processo de suspensão da realidade, de interdição do debate, o discurso contra a discussão de soluções políticas, foi empregado junto com um amplo e minucioso conjunto de ataques e campanhas de desinformação. Dificilmente daria certo, se Bolsonaro tivesse que debater as soluções para o país. Por que essa estratégia de desinformação não deu certo no Nordeste? Principalmente, porque lá, os efeitos concretos de redução da miséria e de melhoria das condições de vida dos governos de centro-esquerda não poderiam ser anulados por discursos morais ou de ataques a Lula. Todavia, o “kit gay” teve um efeito grande nas camadas da baixa classe média nordestina.”

Sérgio Amadeu2019-01-29T17:57:22-02:00

Rafael Evangelista

“Não há, ainda, pesquisas consistentes que consigam dar conta exatamente do que aconteceu no processo eleitoral brasileiro, até porque é difícil isolar os efeitos das novas tecnologias de comunicação do contexto específico dessa eleição, pesando corretamente os fatores. Uma coisa é bastante certa, porém: não é possível pensar o efeito do WhatsApp, e da desinformação que circulou por ele, descolados tanto de outras plataformas de internet (mídias sociais e, principalmente, o YouTube), quanto da mídia tradicional de massa. A desinformação que produziu efeitos, pelo menos em algum momento, encontrou amparo ou não foi concretamente rejeitada nesses outros ambientes.

A falta de transparência das plataformas, seja em suas políticas, algoritmos ou ambientes de circulação da informação, com certeza é um dos maiores complicadores para o combate à desinformação. Como são ambientes privados, e muitas vezes estão baseadas em locais onde nossa legislação não alcança, ninguém tem exata dimensão das operações de alteração e previsão de comportamento que estão sendo desenvolvidas e a pedido de quem. Sabemos que elas existem cotidianamente para o marketing de produtos e temos notícias do uso em eleições. Mas para serem efetivas, e essa é uma das suas características essenciais, elas precisam ser invisíveis a quem é atingido. As frágeis democracias do Sul, com suas instituições titubeantes, disfuncionais ou cúmplices de determinados atores, obviamente são o alvo mais desprotegido.”


Rafael Evangelista é cientista social, mestre em linguística e doutor em antropologia social pela UNICAMP.  Atualmente é pesquisador do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) e professor do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural da mesma Universidade. Em 2018, atuou como pesquisador visitante junto ao Surveillance Studies Centre, da Queen’s University, no Canadá. É Autor do livro digital “Para Além das Máquinas de Adorável Graça: cultura hacker, cibernética e democracia”.

Rafael Evangelista2019-01-28T18:21:12-02:00
Ir ao Topo