Verdade e Ficção: O Caso dos Manifestos Dogma e Surplus

Em 1995 os diretores de cinema dinamarqueses Lars Von Trier, Kristian Levring, Søren Kragh-Jacobsen e Thomas Vinteberg criaram o coletivo Dogma 95 que pregava que para recuperar o espírito criador de diretores e atores, os filmes deveriam se abster ao máximo possível do uso de tecnologias de efeitos especiais, pós-produção, edição e técnicas de estúdio. Com o intuito de recuperar os valores artísticos da história, roteiro e atuação, o manifesto pregava a proibição de filtros de câmera, iluminação especial artificial, utilização de música incidental, recursos temporais e geográficos fora do ‘aqui e agora’ e pregava a utilização exclusiva de locações para filmagem.

Como oposição a estes princípios, o cineasta Sueco Erik Gandini lançou o “surplus Manifesto” concomitantemente à produção de seu documentário “Surplus – Terrorized into being consumers”. O documentário mostra repetidamente locações não identificáveis, constante manipulação e edição de áudio e vídeo, atemporalidade e alocalidade e muitas técnicas de efeitos mescladas as filmagens, numa explícita crítica aos regimes políticos, de esquerda e direita, e de seus próprios artifícios de manipulação. No manifesto, Gandini declara: “Nunca tente ser realista ou neutro”.

Enquanto o dogma defende a necessidade da simplicidade literal e pureza factual do ambiente da obra, o Surplus prega distorcer e confundir as informações (som, imagem, lugar, tempo) de maneira a propor uma verdade velada, fruto de combinações de pontos de vista. São portanto duas visões opostas sobre como retratar suas histórias (fictícias ou documentais) a partir de pedaços de realidade.

O debate sobre desinformação, liberdade de expressão e política, não deve permitir a utilização do termo fake news para sustentar ataques contra visões, pontos de vista e formas de expressão sob o argumento de deverem retratar o verdadeiro. O uso maleável da noção de fake news, que qualifica implicitamente de mentira uma notícia, não deve tornar-se justificativa para a restrição da liberdade de expressão e artística através de pressões de ordem política, religiosa, moral e ideológica. Tal possibilidade, ao admitir ou impor uma ‘verdade’ particular para expressões da linguagem e do espírito, fortalece a pobreza crítica, imaginativa e interpretativa.

A capacidade ou não de se distinguir literalidade de alegoria faz do processo de fluxo de informações um problema que exerce influência política. No caso das fake news, por exemplo, conta o fato de seu impacto se beneficiar da fragilidade interpretativa e cultural que ela reproduz e da ausência de uma cultura da informação pela qual se deve buscar, apurar, analisar e criticar uma informação a partir do dado oferecido. Neste sentido, não nos parece que o aumento de legislações, impedimentos técnicos ou restrições legais a conteúdos eletrônicos seja resposta adequada e efetiva para a confusão posta sobre o fluxo enorme de conteúdo que circulam pela Internet.