Nas democracias representativas, o período eleitoral costuma ser um momento de grande politização do debate público. No Brasil, a obrigatoriedade do voto faz com que as diversas camadas da população tenham que se mobilizar em torno das eleições – algo que nem sempre acontece durante as movimentações políticas contínuas que se restringem a alguns grupos interessados e organizados.
No entanto, em um país marcado pela forte desigualdade social, a prática de compra de votos segue sendo uma realidade em pleno século XXI. Pesquisa recente encomendada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostrou que em uma amostra de dois mil eleitores de 18 a 60 anos, 28% declarou ter conhecimento ou ter presenciado essa prática. Além disso, constatou-se que a percepção das pessoas sobre a ilegalidade da compra de votos ainda é baixa.
Até 1821, as normas eleitorais vigentes no Brasil eram fruto dos códigos Afonsino, Manuelino e Filipino, datados do fim da Idade Média europeia. Com a pressão pela adoção da monarquia constitucional em Portugal, o Brasil realizou, ainda enquanto colônia, eleições para a escolha de deputados para a corte de Lisboa. Já no país independente, a Constituição de 1824 determinava o voto pecuniário, no qual “votantes” e “eleitores” (o voto era indireto e os votantes escolhiam eleitores que escolhiam os representantes populares) necessitavam ter um mínimo de renda ou posse.
Até a proclamação da República o modelo se seguiu, sendo caracterizado pelo voto não secreto e o impedimento de escravos, mulheres e – embora não formalmente – analfabetos (o preenchimento da cédula exigia assinatura) de votarem. Em 1881, com a Lei Saraiva, o voto tornou-se secreto, as eleições, diretas, decretou-se o fim da vinculação do processo eleitoral a ritos religiosos católicos e estabeleceu-se o papel central do Poder Judiciário na organização das eleições.
Com a constituição da República em 1891, porém, retrocederam-se as exigências que buscavam eleições mais transparentes e oficializou-se a proibição do voto dos analfabetos, que só conquistariam esse direito a partir de 1985. O afastamento do Judiciário do controle da organização das eleições fez com que os poderes locais constituídos passassem a ter maior influência na administração do processo eleitoral e, até 1930 o processo foi marcado pelo poder dos coronéis, o “voto de cabresto” e o controle do eleitor através do voto facultativo e da entrega de duas cédulas, uma delas assinada perante a mesa eleitoral controlada pelo poder local.
Tanto o Estado Novo (1937-1946), quanto a ditadura civil-militar (1964-1985) limitaram direitos políticos relacionados ao voto. Apenas em 1988, com a chamada “Constituição Cidadã”, estabelece-se no Brasil o sufrágio universal.
Para além disso, diversas outras práticas e abusos representam riscos à liberdade de voto e à democracia no país e, desde as evidências sobre possíveis interferências nas eleições de países como Colômbia, Estados Unidos e no plebicito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, a disseminação de desinformação se tornou uma grande preocupação.
Em junho de 2018, pouco antes das eleições, um comentário do Ministro Luis Fux gerou um grande debate sobre como as chamadas “fake news” seriam tratadas no processo eleitoral brasileiro. O ministro citou o artigo 222 do Código Eleitoral para afirmar que “temos uma tutela penal enérgica que pode anular candidatura que obteve êxito com base em ‘fake news’”. “Tem uma regra geral no artigo 323 do Código Eleitoral. E nós temos também a tutela no campo eleitoral, que impõe multas, impõe direito de resposta e impõe também eventualmente até anulação daquela eleição se ela foi fruto de uma massificação de ‘fake news’, com base no artigo 222 do Código Eleitoral”, detalhou na época. O artigo citado pelo ministro diz que “[é] também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei”. O citado artigo 237, por sua vez, estabelece que “[a] interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos”.
A afirmação alardeada pelo ministro Fux implica à noção fluida de fake news a qualidade geral de identificação em face da falsidade, fraude, coação, poder econômico e desvio ou abuso do poder de autoridade “em desfavor da liberdade do voto”. A generalidade com que o ministro tratou do tema é incompatível com a complexidade e a falta de uma definição clara da ideia de fake news. O termo tem caído em desuso no âmbito internacional é foi considerado “totalmente inadequado em descrever os fenômenos complexos da poluição da informação” em documento do Conselho da Europa (Council of Europe report DGI(2017)09). O documento aponta também que o termo começou a ser apropriado por políticos de todo o mundo para “descrever organizações de mídia cuja cobertura lhes desagrada”. Assim, a ideia de fake news se torna “um mecanismo pelo qual os poderosos podem reprimir, restringir, minar e contornar a liberdade de imprensa”.
O relatório divide o processo geral de “desordem informacional” em 3 fenômenos típicos que se situam nas esferas da informação falsa e da informação prejudicial. Na esfera da informação falsa, que inclui conexões errôneas e conteúdos mal direcionados, está a “informação equivocada” (Mis-Information). Na esfera da informação prejudicial, onde se encontram vazamentos, discursos de ódio e assédios, está a “informação maléfica” (Mal-Information). Onde as duas esferas se encontram e onde se produz conteúdo falso, manipulado e fabricado, que se utilizam de ambos aspectos (falsa e prejudicial) está o campo da “desinformação” (Disinformation). O relatório exemplifica as diferenças entre os três tipos com casos ocorridos na eleição francesa de 2017.
A fim de dar significado a esta desordem informacional e afastar o termo genérico de fake news da agenda de debates, o relatório também destaca 3 elementos e 3 fases que precisam de compreensão no intuito de abarcar a complexidade da questão: Agente, mensagem e intérprete e criação, produção e distribuição. No caso de processos eleitorais, notamos a necessidade de se estabelecer se os atores são organizados, institucionalizados e se movem por motivações políticas tendo como alvo o eleitorado. Portanto, para além das decisões de remoção técnica de conteúdo, processos jurídicos relacionados à difamação e à honra, seria necessário uma ação de inteligência, cooperação e informação para coibir a própria formação do ecossistema de desinformação que naturalmente abarca poder econômico e estratégias definidas de manipulação eleitoral. Enquanto tomamos conhecimento sobre uma série de remoções de conteúdos online esporádicas e distribuídas, casos mais graves de produção em série de desinformação e suspeitas de irregularidade eleitoral ainda carecem de definição jurídica.
O jornal “O Estado de São Paulo” publicou uma opinião no dia 25 de junho criticando as declarações do ministro e argumentando que “[a]o afirmar que uma eleição pode ser anulada se houver disseminação em larga escala de informações falsas sobre este ou aquele candidato, o ministro Fux está a dizer que qualquer eleição pode ser anulada, e que muitas eleições no passado – para não dizer todas – deveriam ter sido questionadas, pois não há nem nunca houve pleito em que candidatos não disseminassem maldizeres e falsidades sobre seus adversários.”. Na crítica o o jornal reconhece a complexidade do desafio das notícias falsas e menciona o perigo do sistema de justiça se valer de “poder de polícia” para interpretar, julgar e condenar uma prática que, apesar de muito antiga, ainda não foi compreendida em sua complexidade e nem suas soluções combatidas com firmeza e de maneira a fortalecer os regimes democráticos e a liberdade de expressão.
Nesse sentido, as primeiras perguntas que precisam ser feitas é se a “liberdade do voto” está mesmo sendo solapada por notícias que circulam nos meios eletrônicos e digitais, quais são os agentes envolvidos em sua produção e difusão, quais seus impactos e características disruptivas e as razões, causas e mecanismos que propiciaram tal comportamento. Assim, pode-se melhor analisar os remédios, salvaguardas, punições e políticas mais urgentes para combater esta situação. Ademais é importante verificar se as medidas de combate a desinformação estão em acordo com os princípios, normas e recomendações internacionais que protegem a liberdade de expressão.