Sobre artigo19

A ARTIGO 19 é uma organização não-governamental de direitos humanos nascida em 1987, em Londres, com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo. Seu nome tem origem no 19º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Desvio de Sentido e Expressão Crítica: Situacionistas e os Adbusters

Com o desenvolvimento massivo dos meios de comunicação no decorrer do século XX, a eletrônica se torna fundamental no processo de troca de informações. As disputas semânticas se fortaleceram no final dos anos 60 com o avanço das tecnologias de reprodução e edição e também com a diversificação da produção criativa e crítica. O que se conhece hoje como ‘memes’ tem sua origem moderna em um movimento artístico e político da década de 60 na Europa. O movimento situacionista (1), como forma de criticar tanto o socialismo real do leste europeu e a sociedade de consumo capitalista, promoveu ações que misturavam a cultura de massas, a crítica teórica e a atuação política.

Uma das expressões era a utilização de histórias em quadrinhos nas quais os balões de diálogos eram alterados de modo a transformar a significação e o contexto da obra original. Este tipo de ação ficou conhecida como detournement (desvio).

Mais recentemente, nos anos 90, acompanhando a intersecção entre política, arte e tecnologia uma série de movimentos se utilizaram de ferramentas tecnológicas para promover trotes, embustes e sátiras como uma maneira de politizar tanto as tecnologias quanto as questões sociais via manipulação de informações. Um grupo que desenvolveu a prática do detournement situacionista e o trouxe à contemporaneidade foi o norte-americano Adbusters. Em suas obras, as imagens, símbolos, marcas e mensagens são subvertidas e fazem surgir significados diferentes dos originais. Tendo como alvo as mensagens comerciais de grandes empresas, a experiência dos Adbusters faz a crítica da “verdade” contida nas propagandas e expõe o conteúdo político e econômico embutido nas ações de marketing.

Como forma de crítica política, social, cultural e econômica, o desvio de função dos conteúdos produzidos pelos mecanismos técnicos de informação e comunicação tem sido uma constante e vêm se intensificando com o passar dos anos e a evolução tecnológica. O debate sobre veracidade, originalidade, autoria e significado das mensagens é um problema que engloba as esferas tecnológicas, criativas e culturais e a interferência destes processos na realidade social é um tema fundamental para ser debatido dentro do escopo da liberdade de expressão.

(1) Ver: Situacionista: Teoria e Prática da Revolução. Ed. Conrad, 2002.

Desvio de Sentido e Expressão Crítica: Situacionistas e os Adbusters2019-01-29T23:59:05-02:00

Verdade e Ficção: O Caso dos Manifestos Dogma e Surplus

Em 1995 os diretores de cinema dinamarqueses Lars Von Trier, Kristian Levring, Søren Kragh-Jacobsen e Thomas Vinteberg criaram o coletivo Dogma 95 que pregava que para recuperar o espírito criador de diretores e atores, os filmes deveriam se abster ao máximo possível do uso de tecnologias de efeitos especiais, pós-produção, edição e técnicas de estúdio. Com o intuito de recuperar os valores artísticos da história, roteiro e atuação, o manifesto pregava a proibição de filtros de câmera, iluminação especial artificial, utilização de música incidental, recursos temporais e geográficos fora do ‘aqui e agora’ e pregava a utilização exclusiva de locações para filmagem.

Como oposição a estes princípios, o cineasta Sueco Erik Gandini lançou o “surplus Manifesto” concomitantemente à produção de seu documentário “Surplus – Terrorized into being consumers”. O documentário mostra repetidamente locações não identificáveis, constante manipulação e edição de áudio e vídeo, atemporalidade e alocalidade e muitas técnicas de efeitos mescladas as filmagens, numa explícita crítica aos regimes políticos, de esquerda e direita, e de seus próprios artifícios de manipulação. No manifesto, Gandini declara: “Nunca tente ser realista ou neutro”.

Enquanto o dogma defende a necessidade da simplicidade literal e pureza factual do ambiente da obra, o Surplus prega distorcer e confundir as informações (som, imagem, lugar, tempo) de maneira a propor uma verdade velada, fruto de combinações de pontos de vista. São portanto duas visões opostas sobre como retratar suas histórias (fictícias ou documentais) a partir de pedaços de realidade.

O debate sobre desinformação, liberdade de expressão e política, não deve permitir a utilização do termo fake news para sustentar ataques contra visões, pontos de vista e formas de expressão sob o argumento de deverem retratar o verdadeiro. O uso maleável da noção de fake news, que qualifica implicitamente de mentira uma notícia, não deve tornar-se justificativa para a restrição da liberdade de expressão e artística através de pressões de ordem política, religiosa, moral e ideológica. Tal possibilidade, ao admitir ou impor uma ‘verdade’ particular para expressões da linguagem e do espírito, fortalece a pobreza crítica, imaginativa e interpretativa.

A capacidade ou não de se distinguir literalidade de alegoria faz do processo de fluxo de informações um problema que exerce influência política. No caso das fake news, por exemplo, conta o fato de seu impacto se beneficiar da fragilidade interpretativa e cultural que ela reproduz e da ausência de uma cultura da informação pela qual se deve buscar, apurar, analisar e criticar uma informação a partir do dado oferecido. Neste sentido, não nos parece que o aumento de legislações, impedimentos técnicos ou restrições legais a conteúdos eletrônicos seja resposta adequada e efetiva para a confusão posta sobre o fluxo enorme de conteúdo que circulam pela Internet.

Verdade e Ficção: O Caso dos Manifestos Dogma e Surplus2019-02-01T10:59:00-02:00

Autoria e Padrões: O Primeiro Caso de Remoção Baseada em ‘Fake News’

Em Março de 2018, em uma sessão temática no plenário do Senado Federal que debateu as fake news, o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) argumentou que a autoria das matérias e a profissionalidade das empresas confiaria às notícias por elas veiculadas, ainda que não fossem livres de erro, maior credibilidade, solidez e facilidade de apuração. No entanto, a trajetória da desinformação, como veremos, não se mede unicamente por sua assinatura ou origem.

A Bíblia, a Ilíada e a Odisséia, por exemplo, são marcos centrais da cultura ocidental nos quais o questionamento sobre seus autores e fatos históricos que narram não impede o reconhecimento de sua relevância literária, artística e religiosa. Ou seja, a ausência de autoria e de credibilidade científica também constroem obras de enorme influência na realidade social e seria um erro pensar que remédios fáceis como proibição legal de circulação ou a criminalização do anonimato pudessem sanar os eventuais malefícios que representam.

A primeira decisão de remoção de conteúdo da Internet baseada na Resolução nº 23.551/2017 foi dada em favor da campanha da candidata Marina Silva, atendendo a um pedido de liminar denunciando 5 postagens de Facebook que, segundo ela, difamavam sua imagem política em função da robotização, anonimato e conteúdo falso propagado pela Internet. A decisão, em favor da remoção das cinco publicações da página “Partido Anti-PT” ocorreu no dia 7 de junho, antes do início da campanha eleitoral.

Em Junho de 2016, o colunista Lauro Jardim em seu blog no jornal O Globo, publica que Leo Pinheiro teria dito em delação premiada que Marina Silva recebera recursos não contabilizados para sua campanha presidencial de 2014. Grandes veículos comerciais reproduziram a notícia que foi retomada e publicada em 2018 pela página “Partido Anti-PT”, hospedada no Facebook. A página constantemente publica conteúdo do site imprensaviva.com, que, apesar de promover manchetes alteradas e ênfases mais dramáticas no conteúdo a fim de destacar sua linha política, se baseia principalmente em notícias de veículos comerciais.

O ministro Sérgio Banhos, relator do caso, fundamenta sua decisão no caráter anônimo das publicações, argumentando que “A ausência de identificação de autoria das notícias, portanto, indica a necessidade de remoção das publicações do perfil público”. Entretanto, além de desconsiderar que tais fatos haviam sido anteriormente publicados por veículos comerciais em matérias assinadas, o Ministro também não menciona a disposição em contrário constante do art. 33, parágrafo 2º, da resolução 23.551, que diz que “A ausência de identificação imediata do usuário responsável pela divulgação do conteúdo não constitui circunstância suficiente para o deferimento do pedido de remoção de conteúdo da internet e somente será considerada anônima caso não seja possível a identificação dos usuários após a adoção das providências previstas nos arts. 10 e 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)”.

Ainda mais preocupante, é o fato da decisão mencionar um “padrão” que poderia identificar fake news, citando um blog que publica um estudo mencionando um possível reconhecimento destes padrões por meio de Inteligência Artificial. Assim, escreve o ministro, “a manchete sensacionalista, a prevalência da primeira pessoa no texto, erros de gramática e coesão e o uso de palavras de julgamento e extremismo” seriam “conformações estilísticas” que “indicam a existência de um padrão relativamente comum nesse tipo de publicação, identificável até mesmo pela inteligência artificial”.

Assim, o caso nos aponta 3 problemas: 1) A assimetria da decisão que recai sobre o post em rede social mas não se remete aos veículos que inicialmente deram a notícia, supostamente de maior credibilidade. 2) A justificativa da anonimidade da publicação, em entendimento que é discutível pela interpretação da própria resolução em que a decisão se baseia e 3) A suposição de que padrões de linguagem e escrita podem determinar legalmente o que reflete a “mentira” contida na ideia de fake news.

Autoria e Padrões: O Primeiro Caso de Remoção Baseada em ‘Fake News’2019-01-29T23:35:22-02:00
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